quarta-feira, 5 de junho de 2013

O pragmatismo como censura intelectual contemporânea (primeira parte)

O pleno desenvolvimento intelectual humano – o livre pensamento, o conhecimento amplo das matérias da curiosidade, exploração e pesquisa – já encontrou ao longo da caminhada humana as mais diversas e absurdas barreiras. Há uma dicotomia gritante no fato de denominarmo-nos homo sapiens e o número elevado de indivíduos que não possuem um grau mínimo de conhecimento condizente com as descobertas do nosso tempo (um pesquisa confirmou, por exemplo, alarmante número de norte-americanos alfabetizados que acreditam que é o sol que gira em torno da Terra e não o contrário).

Embora o conhecimento evolua, ele não é devidamente priorizado, e não se incorpora culturalmente à consciência coletiva dos povos. Se nos tempos passados a sabedoria no era negada, isso se fundamentava na necessidade de um Estado Absoluto garantir para si os mais medonhos privilégios (onde não há conhecimento é mais fácil aceitar a autoridade pela autoridade). O distanciamento atual entre as pessoas comuns e o conhecimento universal já não pode se sustentar nas sociedades democráticas modernas – cuja primazia e sustentáculo são a dignidade da pessoa humana.

Há, sem dívida, resquícios históricos dos tempos passados que podem explicar parte dessa deficiência cognitiva geral atual – o Brasil é uma democracia demasiado recente, ainda deficiente em suas instituições de ensino e portador de uma cultua popular que parece premiar a futilidade. A respeito desses fatores a problematização do tema pode se mostrar imensa e altamente complexa, não cabendo apontar ou mesmo tentar desenvolver raciocínio sobre esses muitos fatores relevantes.

Este ensaio aponta, sim, para o que poderíamos chamar de “topo da pirâmide” mesmo, para as barreiras que o conhecimento aprofundado encontra onde não deveria encontrar. Estamos agora na “era da informação”, temos acesso rápido e simplificado a tudo que quisermos acessar; não obstante estamos ainda na era do consumo exacerbado – tudo tem um preço –, onde a identidade humana pode se resumir, em geral, a seus bens de consumo. O próprio homem acaba se tornando aqui um bem de consumo e de valor quantificável: hoje todos estamos à venda.

É aqui que tudo se torna um inacreditável “matar ou morrer”. O novo mundo transforma-se diariamente em velocidade incrível; a propaganda – de que não podemos nos esquivar jamais – cria a cada novo instante as mais impensadas necessidades. Como precisamos comer, beber e dormir, também precisamos consumir em proporções esfingéticas – e produzir, produzir, produzir.

Iludimo-nos diariamente em empregos muitas vezes miseráveis com a possibilidade de poder em breve ter mais (amparados na estúpida ideia de que isso de algum modo nos fará ser mais), e logo estamos desesperados, exaustos e profundamente desiludidos. A luta diária por sobrevivência incorpora à causa, gradativamente, inauditas e estapafúrdias outras necessidades (consequentemente dividindo-nos em um complexo sistema de “castas” sociais que indiano algum teria imaginado).

O senso de colaboração e irmandade entre os homens vai desaparecendo e dá lugar a uma terrível competição intra-espécie onde não há vencedores, embora a nossa atual cultura mande vencer a qualquer preço. Acabamos tão profundamente exaustos que não há energia para desenvolvermo-nos individualmente melhor do que fariam formigas em um formigueiro. A curiosidade – ferramenta primordial da verdadeira evolução humana – desaparece e passa a imperar um forte senso de pragmatismo: perguntas e respostas cada vez mais curtas, surgidas apenas para resolver os problemas mais corriqueiros do desafio consumista.

Neste novo mundo – a afirmação vai parecer um pouco absurda para alguns – o pragmatismo transformou-se na nova censura (o conceito é figurativo, mas faz bastante sentido). O pragmatismo enraizado em nossa cultura obviamente não nos proíbe a análise mais aprofundada, mas arruína nossa capacidade de poder – e também de querer – pensar. É tão grande o cansaço, tão exaustiva a corrida que a curiosidade propriamente dita, sem fins imediatamente práticos torna-se enfadonha; o verdadeiro conhecimento é bobagem para uns, hobby para outros.


“Isso não se discute”, “isso eu não preciso saber” são os bordões absurdos que surgem imediatamente diante de qualquer debate mais aprofundado; e a maioria das pessoas parece encontrar o “segredo do cosmos” dentro dos mais gastos, mais chulos ditos populares (explicações simples satisfazem as mentes mais simples). A massificação cultural veio a finalmente fazer com as pessoas o que a industrialização fez primeiro com as coisas – este vinho sobre a minha mesa é igual aos outros da prateleira, pois foi fabricado em série –; não é nenhum exagero dizer o mesmo sobre muitas pessoas: lá fora acaba de passar o quinto carro o tocar a mesma música.

(Thiago Nelsis)